quinta-feira, 1 de outubro de 2015

Coisas de pássaro

Era verão. Já havíamos migrado 22 vezes para aquela mesma colônia de árvores mais ao norte e caminhávamos lentamente para o de número 23.

Aquele talvez tinha sido o verão mais quente que eu me lembrava desde que eu nem conseguia bater as minhas asas! Foi uma época muito quente, nem tão úmida. Mas com imensos banquetes de insetos, frutos e folhas para alimentar a todos nós. Todos os dias. O sol raiava desde o momento em que lambia as primeiras folhas da colina até a última folha de árvore da floresta. À agua era límpida, cristalina e corria num ritmo que causava um batuque nas pedras por toda extensão do rio.

Foi naquele verão que aprendi o que era o significado de “cada qual com seu igual”, numa experiência frustrada de contato com um que não é da minha espécie. Mas a vida tem dessas coisas, como dizem: “vivendo e aprendendo”. E logo, o inverno. Quando se aproximavam os primeiros sinais, todos os mestres alertaram, quase que uníssimo, que migraríamos assim que chegasse o amanhecer. Fazer aquela travessia era fácil junto com todo o meu bando junto, mas como nada é para sempre, eles acabaram morrendo. Todos. Um. De. Cada. Vez. Antes tivessem levado a mim! Já passava da hora deles me levarem também!

Eu não sabia se estava pronto para mais aquela travessia. Sentia algo no peito, que inclusive, a maioria dos outros sentiam também, mas preferiam fingir que estava tudo bem e não sequer soltar um piu sobre aquilo. Eu nunca havia sentido, só havia ouvido falar que é uma premissa. Como se algo de ruim fosse acontecer, mas ninguém sabia quando, quem ou que. Entende? Coisas de pássaros. Um dia você vai entender. E como eu percebia o clima no ninho de não tocar no assunto, decidi ficar de bico calado também.

Arrumamos todas as nossas coisas antes do anoitecer para partirmos assim que fosse possível avistar o primeiro raio de luz emanado do sol. Estávamos todos tensos. Aflitos com aquilo que sentíamos. Aliás, o que era aquilo? Ah, os mais experientes chamam de angústia. Eu perdia o foco com aquela dor chata. Voltemos ao voo. Vamos nos concentrar na rota... E aconteceu. Eu vi, pela primeira vez, o sol nascer. Nunca havia visto imagem tão magnifica. Aquela luz, avermelhada. Ou era laranja? Não importa! Não existia piado ou assovio que pudessem descrever a cena mais linda que um dia já vi. Percebi que naquele momento, a dor cerrou. Olhei para todos os outros enquanto sorriam e se deliciavam com o sol preenchendo seus peitorais e dando forças às suas asas. Era agora.

Como num solavanco, fui arrancado para fora da arvore que eu estava apoiado. Minhas asas batendo cada vez mais fortes. Precisava pegar altitude o suficiente para depois planar e descansar por uma boa parte da migração. Eu já estava ofegante. Meus músculos queimando, trabalhando cada vez com mais força para que eu conseguisse dobrar as asas o suficiente para continuar subindo.  - Vamos! – Eu dizia para mim mesmo para que eu conseguisse subir ainda mais. Um dor irrompe da ponta esquerda e tenho a sensação de que minha asa esquerda vai se rasgar ao meio. Começo a perder altitude. Descendo. Caindo. Sem controle, rápido demais
para que eu pudesse tomar alguma decisão sem me machucar. Pouco. Queda iminente. Já era.

Quando decidi me entregar, parece que o instinto decidiu por mim. Eu sabia, que se esticasse ao máximo, não sentiria aquela dor e poderia manter o voo. Foi o que eu fiz. Consegui subir de volta, utilizando toda a curvatura da minha asa para me erguer ainda mais no ar. E lá estávamos nós, juntos. Todos.
Já voávamos por mais de 5 horas, ainda restavam 3 horas e não pretendíamos fazer nenhuma pausa, já que a angústia nos recordava que algo estava pela frente. Eu descansava no vácuo de outros do bando, afinal, todos precisavam descansar e fazendo isso, todos conseguiríamos manter o voo até nosso destino final.

Voamos assim, tranquilos, por volta de duas horas. A não ser pela nuvem que nos deixaria ás cegas logo à frente. Era nesse momento em que a dor no peito apertava, quase nos estrangulando. Foi naquela hora que eu descobri o que era perigo iminente. Não só visualizando, mas sentido. A dor no peito ganhou vozes dentro da minha cabeça e era voz de todos do bando. Consegui reconhecer a maioria delas, apesar de estar um gritaria que me dava arrepios: “CUIDADO!”. Alguma orações e súplicas, crianças e alguns mais velhos chorando. Me lembro bem que em todas as minhas migrações, nunca tinha sentido tal união. E nunca tinha visto tal nuvem. Mas meu pensamento era lógico: ao entrarmos na nuvem, continuaremos conectados e nos guiaremos. Certo? Errado.

Quando adentramos a grande bola cinza perdi toda a conexão. Eu me sentia apenas um naco de carne, arremessado ao ar. Inerte. Morto. Era como se tivesse perdido minha origem, se esquecido de mim. Se não nos víamos, nós não existíamos. O instinto não agia. Coisa de pássaros. Viajei nesse modus operandi por volta de uns cinquenta minutos, na esperança de ver ou ouvir alguém que me pudesse me guiar. Mas não encontrava uma alma penada se quer. Ninguém. Eu passei. Acabou. A nuvem acabou. A dor no peito continua.

Eu estava, como de costume, sozinho. Não via ninguém. Olhei por todos os lados, mas não tinha ninguém. Só eu e o mar. Era isso. Pensei mais uma vez “acabou”. Mas tomei a decisão de não me entregar tão fácil e bateria minhas asas até não conseguir mais e só assim, conseguiriam me levar. Voei por volta de mais uma hora. Já estava exausto. Mal conseguia visualizar o sol se pondo ao fundo da paisagem, mas fiz todo o esforço que eu pudesse gravar aquela imagem na minha mente. Era como se a natureza estivesse me recompensando por tudo aquilo que passei. E essa imagem levou todos os meus problemas, junto com o último raio de sol.

É agora. Soltei meu corpo. Deixei que planasse até atingir a água que cobria a superfície. Descendo, lentamente. A sensação era que eu não pesava nada. Agora era como eu não fosse nada, mas nada seria o suficiente para fazer parte daquilo que me aguardava. Agora eu não me importava com a minha origem. Agora eu sabia a onde pertencer e coexistir. Estava prestes a tocar a água. Prendi meu folego. Eu conseguia ver meu reflexo em diversas faces da a água. Eu podia ver meu reflexo, mas não conseguia identificar dois reflexos pareados à mim. Fiquei por um tempo ali, planando, sem perder altitude, velocidade e sem sentir nenhuma dor. Eu disse nenhuma dor? Me afastaram da água. Eu demorei para perceber que não era agora. Que a angustia havia acabado e mais a frente, meu bando me esperava em um ritmo mais lento que o de costume. Era o instinto.
Eu me separei deles. Mas eles me esperaram para que cheguemos todos juntos. Um mais novo do bando se aproximou de mim, ofereceu seu vácuo para que eu pudesse repousar. Ele foi muito generoso, até por que ninguém costumava fazer isso por mim no bando. Me surpreendeu. Fiquei por ali até ouvir o primeiro sinal de “chegamos!”.


Era ali. Mas não era ali. Era uma ilha diferente! Mais árvores, mais lagos, mais comida! É isso! Desviamos a rota todos juntos! Eu me enganei! Nós ainda estamos juntos mesmo enquanto estamos separados! Eu aprendi a seguir meu instinto naquela hora.

A nova colônia era linda. Não chegava à beleza do sol vindo e indo, mas era tão majestosa quanto! Um pouco à nossa esquerda, era rodeada de água cristalinas, flora verdejante e insetos suculentos. E galhos para todos. Descemos, escolhi meu galho para começar tudo de novo. Decidi me instalar num que fosse possível ver o sol nascer atrás da praia. Com sombra o suficiente para as horas de descanso, que era o que eu precisava. Ao que descemos, cada um foi se instalando, exaustos. Um sentimento tomava o bando: gratidão e paz, por que sabíamos que tudo havia acabado e tudo ficaria bem a partir dali. Alguns gorjearam eu meu redor. Me desfiz de minhas coisas, me ajeitei e estiquei minhas asas, me preparando para um cochilo. Fui ficando pesado, os sons distantes, pouca luminosidade. Dormi.

Acordei. Eu era o mesmo de sempre: olhos verdes, bicudo e desajeitado. Barba e cabelo bagunçado pela manhã. Meu coração estava calmo e decidido. Eu era o mesmo humano de sempre, só que meus braços e costas queimavam, como se eu tivesse nadado a maior prova de natação de todos os tempos. Um pensamento vem à mente: essa deve ser a dor que os pássaros sentem quando voam em busca de sua renovação e liberdade.